8.6.11

IMPRENSA


SOBRE ROSÁRIO

rosário, do latim “jardim de rosas”.  “Colar para contar orações”.
Como diz o poeta Manoel de Barros, “o artista não vê, ele tem visões”.
Este espetáculo é fruto de uma série de visões. Em 1998 o desejo de falar de ancestralidade, em 1999 uma saia branca imensa e uma bacia prateada, e enxurradas de visões sobre o povo brasileiro, o corte diaspórico que determinou sua formação, e as festas...
Certo dia, escutei uma bela canção que me fez vislumbrar o espetáculo. A canção era a Marcha de Nossa Senhora do Rosário (cantada pela comunidade dos Arturos, em Contagem, MG) e pesquisando fui encontrar as simbologias de coroação de reis negros. O impulso desta criação veio da relação do ser humano com a esfera do sagrado, me encantando com a força de transformação que esta (re) ligação tem nas vidas das pessoas.
Há dez anos atrás, a atriz e diretora Meran Vargens, minha inventiva professora de Expressão Vocal na graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia, propôs que criássemos uma cena de trinta minutos. Esta foi a primeira porta para viabilizar todos estes anseios e visões e iniciar este caminho artístico. Um caminho revelado através de passos concretos: o reavivar de uma memória muscular profunda, a realização de uma ação cênica que traga corporeidades marcadas de ancestralidade e a criação artística a partir desses passos. As inquietações com relação a arte e a urgência de aprofundar na expressão teatral caracterizavam-me como artista-pesquisadora. Aí estava meu prazer. Foi realmente uma luz nesta época conhecer o Lume Teatro que me transmitiu meios concretos de trabalho do ator enquanto corpo, voz, energia e memória, muito próximo do que eu buscava então.
Ao mesmo tempo a necessidade de ver outras formas de teatro, me levou a viajar, pesquisar acervos e encontrar manifestações populares no Nordeste, e em outras partes do Brasil.
Arrebatada pela beleza e força de algumas culturas orais, ainda em estado vivo e preservado, convivi com comunidades, aprendi cantos, danças, lutas; aprendi a jogar capoeira de angola na Bahia e a lutar espada de reisado de congo no Ceará; cantei, dancei e sorri junto. Também chorei muitas vezes, comovida com a grandiosidade deste povo, com suas sofisticadas manifestações culturais que revelavam traços da minha própria identidade como brasileira. Organizei criativamente toda experiência física e vocal e tudo que colhi vivenciando as culturas orais, no intuito de tecer um espetáculo que traduzisse essa trajetória. Rosário se delineava. A manifestação de devoção a Nossa Senhora do Rosário e a simbologia de coroação de reis negros revelando aspectos da formação das identidades brasileiras pelo viés da mestiçagem religiosa.
Neste espetáculo a simbologia da coroação de reis negros chama a todos para coroar-se, afirmar-se, se colocar diante de sua própria vida, de sua responsabilidade com o outro e com o mundo. E nos lembra a possibilidade de se reinventar através do sagrado, da beleza e da fé. Rosário é uma fábula pessoal que recria imagens de terra, mar, mãe, rainhas, coroações, cortes e catarses em um ritual, em uma festa.
Seja bem vindo a este reinado, a esta brincadeira!                                                                   
Felícia de Castro
CONCEPÇÃO CÊNICA

A criação do espetáculo Rosário se articulou através de uma multiplicidade de processos que se complementaram e dialogaram entre si apontando os caminhos para a encenação. As etapas que levaram à criação foram o treinamento pré-expressivo (assimilação de técnicas como o butoh e a pesquisa físico-vocal) ao qual me dediquei durante vários anos com meu grupo (palhaços para sempre), e a vivência e aprendizado dos elementos das tradições orais pesquisadas em campo e acervos.
A construção dramatúrgica de Rosário é sustentada em quatro eixos, que se desenvolvem e se interpenetram, num movimento cíclico:
I – ritual / sagrado / celebração / nascimento
II – corte do lugar de origem / sofrimento / cativeiro /aprisionamento
III – força / beleza / festas / grito / volta às raízes / ligação divina
IV – redenção / êxtase / libertação / coroação
Estes círculos são girados por arquétipos de mulheres, ‘arremedos de gente’, que ao mesmo tempo são a mesma mulher em fases e experiências diferentes.
A Estética da cena foi concebida durante todo processo de criação da cena, sendo conseqüência e tendo relação direta com ela. A atmosfera é de um lugar mítico e atemporal. O espaço lendário do ser e seus eternos ciclos são abordados na perspectiva da mulher (mãe criadora, relação terrena), da formação das identidades brasileiras e suas matrizes ancestrais; (áfrica, diápora e Brasil) e da expressão religiosa (busca do sagrado como força de sobrevivência numa realidade hostil, sincretismo). A criação é Centrada na expressão corporal, na pesquisa vocal e na força dos cantos tradicionais e o acontecimento cênico é manifestado como uma fábula pessoal, onde os arquétipos acima descritos são contados pelas personagens (diversas mulheres negras) como em um ritual, numa trajetória circular, feminina, expressiva e poética. 

 Corpo cênico
Estes arquétipos e temáticas são principalmente expressos pelo corpo e voz da atriz, sendo a arte do ator o guia da criação do espetáculo. Tensões e levezas transformadas em fisicidade; beleza, força e lamentos encarnados pela voz.

"Ao assistir Rosário eu vejo da voz nascer corpos... não que a voz seja anterior ao corpo ou não dialogue com esse corpo para surgir; existe sim um corpo, o de Felícia, que impulsiona essa 'primeira' voz. Essa voz pessoal, que aparece e desaparece de cena. Mas a voz da cena (ou vozes) ao ser emitida me parece fazer surgir corpos diferenciados, de forma cíclica, mas a cada movimento gera um outro corpo, surgidos do imaginário criado na pesquisa de campo. Esse imaginário é revelado em cena pelos corpos-ventos que suas vozes em Rosário libertam da terra. Acho isso muito forte em Rosário..." Daniela Guimarães (comentário do público)

Sonoplastia
Uma ambiência sonora que dialoga com a linha vocal do espetáculo, uma trilha construída a partir dos sons dos lugares e manifestações pesquisados, das rezas, dos cantos originais, dos sons da natureza, de instrumentos como tambores e pífanos, que dialogam com as vozes da atriz.

Cenário e figurino 
A presença dos elementos da terra, água, fogo e ar, rege a cena e inspiram a concepção do cenário/figurino, sendo presenças que dialogam dinâmicos com a cena. Galhos secos manipulados pela ‘mulher-árvore’, terra que escorre de sua barriga e delineia um círculo, refazem a idéia de terreiro. Cabaças guardam segredos que se revelam durante o desenrolar dos círculos, uma bacia prateada se metamorfoseia em variadas funções, água, areia, fogo, dançam junto com a atriz, suas mulheres e suas vozes. A saia branca grande, feita ‘barrocamente’ de bordados e rendas, é figurino e objeto cênico, além de usada da forma convencional, ela é manipulada e transforma-se em personagens e objetos. A caveira de um boi é assume a máscara ambígua da escravidão e do trabalho e das festas brasileiras. Espadas verdadeiras vem a tona para guerra. Todos estes elementos estão dispostos juntos como um altar em um ponto do círculo, onde as personagens vão e vêm, abrindo diagonais e círculos e traçando o ritual da cena.
  
Iluminação
Delimitando círculos de tamanhos variados criando a idéia de ciclos e pontuando as trajetórias cênicas. Utilizando principalmente a cor branca aumentando o aspecto cru das cenas; a luz deve variar as intensidades, entre quase ‘estourada’(em cenas sacras, potencializando reflexos construídos com a bacia, o fundo e a saia branca) e penumbras. Serão explorados focos no circulo e na bacia, e a exploração de sombras (utilizando o tecido branco para uma espécie de teatro de sombras).

 “O espetáculo quase que não tem texto. O texto é o corpo da atriz, e a voz dela. Mas a voz é o corpo, né!? Voz é vibração de corpo. O corpo tornado gemido, outras vezes sorriso, choro-canção, silêncio...

Tudo o que tento fazer com poesia ela faz com o corpo:

Expressão livre de discursos. Livre de panfletos. A consciência não como gramática, mas como marcas e fluxos do corpo. Corpo-consciência. Gesto que incomoda e seduz por tão indizível que é. Por tão completo que é. Ato que força o público a fermentar as suas próprias sensações. Suas próprias idéias. E que os discursos sejam como o público: multifacetados.

Ali - no corpo da atriz - [entidade encarnada] todos os elencos se fazem desnecessários."  Robson Poeta Du Rap (comentário do público)